Por que o jornalismo econômico nunca cita a Islândia?

A mão da rua

Em sucessivos plebiscitos, a população islandesa decidiu deixar a banca quebrar, estatizou a sobra e colocou banqueiros na cadeia.

por: Saul Leblon



 A Islândia é uma nação diminuta perto do Brasil, uma espécie de Santa Catarina de gelo, com população menor que a de Jundiaí. Apenas 320 mil habitantes.
 
Se é possível dizer que essas características lhe dão flexibilidade para soluções impensáveis aos ‘baleias’ -- viver de turismo e pesca, por exemplo -- também é verdade que o seu poder de barganha é infinitamente menor.
 
Guiar-se pelo imperativo dos mercados seria o previsível no seu caso, deixando-se levar de forma mais ou menos passiva pela maré dos interesses graúdos que dominam a cena global.
 
Não foi o que ocorreu na crise de 2008.
 
Driblar a fatalidade de uma receita de arrocho em condições de estresse econômico e político extremo, eis aí uma dimensão que conecta as singularidades dessa ilha polar às urgências dos trópicos nos dias que correm.
 
A crise mundial de 2008 pegou a economia e a sociedade islandesa no contrapé de uma vulnerabilidade extrema, confrontando-a, entre outros, com interesses bancários britânicos, alemães e holandeses.
 
A Islândia não tinha mais nada a perder – e isso não é retórico.  A banca do país mergulhara de cabeça na farra financeira da década e havia acumulado o equivalente a uma dúzia de PIBs em operações e compromissos tornados impagáveis do dia para a noite.
 
Quando a ciranda parou de girar com a explosão da bolha imobiliária nos EUA, os credores externos – bancos europeus —  quiseram  empurrar a fatura para a população.
 
A ideia era transformar a Islândia num duto conectado à central de sucção da finança global, que assim resolveria  a sua parte no imbróglio escalpelando a sociedade -- como de fato tem sido feito com vários outros países.
 
O pagamento seria em moeda sonante e em espécie:  alguns milhares de dólares per capita em impostos, cortes de gastos,  privações, privatizações, demissões e o que mais fosse necessário para servir ao principal e aos juros por longos dez anos a quinze anos.
 
A nota dissonante suficientemente conhecida é que a população islandesa não concordou.
 
Em vez de se entregar à mastigação ela resolveu ajustar a engrenagem a seu favor, e não aos desígnios da banca ou de seus acionistas.
 
Ao recusar o matadouro inverteu a sentença: em sucessivos plebiscitos, a população decidiu deixar a banca quebrar, estatizou a sobra e colocou banqueiros na cadeia.
 
Parecia um delírio no gelo, mas o vaticínio do fracasso devastador não se confirmou.
 
Ao contrário. Deu certo. E os dados mais recentes confirmam a vantagem do método em relação ao quadro de terra arrasada observado em sociedades que seguiram a receita oposta.
 
Essa é a notícia fresca na praça, pouco contemplada porém pela emissão conservadora.
 
A mão plebiscitária da democracia pode corrigir e ordenar uma transição de ciclo econômico melhor que a do mercado sozinha.
 
Isso é tão útil e carregado de atualidade numa hora em que a Grécia se rebela e o Brasil se depara com a encruzilhada do seu crescimento que fica a dúvida: por que o saldo favorável da experiência islandesa com a mão dupla não borbulha nas manchetes e escaladas do glorioso jornalismo de economia?
 
Um bom pedaço da explicação está justamente no fato de que os resultados exibidos pelos hereges afrontam a fatalidade que amparou e preserva a solução defendida pelo mainstream aqui e em todo o planeta.
 
Afinal, se ‘there is no alternative’, como dizia lady Tatcher, o melhor é esquecer o mau exemplo islandês.
 
As estatísticas do país mostram o inaceitável:  há vida fora do limbo a que foram encurraladas as economias submetidas a ajustes tidos como mais consistentes e responsáveis.
 
Em todas elas – tirando a boa saúde da riqueza financeira --  os demais indicadores rastejam e escavam o fundo do abismo para o qual foram empurrados a partir de 2008..
 
Tome-se os resultados ilustrativos da Grécia em transe (25% de desemprego), Portugal (45% de aumento da pobreza nos últimos cinco anos), Itália (dívida de 130% do PIB) e Espanha (50% da juventude sem trabalho).
 
Invariavelmente é assim: os indicadores de pobreza, PIB, emprego, dívida pública  e desempenho fiscal encontram-se  muito mais deteriorados do que antes de dar entrada à UTI salvadora.
 
Ajuda a entender, talvez, cogitar que o tratamento de choque é para isso mesmo: para exaurir o organismo, sob monitoramento especializado, de modo a extrair dele o que se quer: a transfusão de riqueza aos mercados e credores.
 
No caso da Islândia aconteceu o oposto. Depois de amargar um retrocesso superior a 8% do PIB, em 2008, com taxas de desemprego explosivas de 12%, o país deu as costas aos mercados e voltou a crescer.
 
A estimativa para este ano é de uma expansão do PIB 3,5%, com uma  taxa de desemprego que já recuou para um degrau confortável em torno de 3,5%.  
 
A economia deixou de ser um guichê do sistema financeiro internacional e se voltou para seus poucos mas consistentes trunfos – sendo o turismo o principal deles, ao trazer anualmente um fluxo de um milhão de visitantes, três vezes o tamanho da população
 
Em um giro pela Europa esta semana, o presidente  Olafur Ragnar Grimsson explicou aos jornalistas atônitos, a receita de sucesso do liliputiano universo islandês contra um mercado comandado por gullivers financeiros nada amistosos nem colaborativos.
‘Você  tem que ter a economia em uma mão e a democracia na outra’, resumiu Grimsson ao El País.
 
Para ter a economia na mão, a Islândia, além de deixar quebrar e estatizar bancos, cometeu outras sugestivas heresias.
 
A primeira foi adiar seu processo de adesão ao euro ficando livre para manejar a própria moeda, drasticamente desvalorizada para atrair capitais, baratear exportações e fortalecer o turismo.
 
Sobretudo, porém, não hesitou em decretar um rigoroso controle de capitais impedindo que os fluxos especulativos fizessem da sua crise uma pista de pousos e decolagens de especuladores e chantagistas financeiros.
 
O controle de capitais islandês persiste; hoje estabelece cotas para a presença de fundos  na economia como uma proporção do PIB,  uma espécie de trava de segurança para salvaguardar o comando do país na mão da sociedade, e não dos circuitos financeiros voláteis.
 
Enfim, o que a pequena Islândia fez de muito anormal foi inscrever na própria engrenagem econômica o controle da nação sobre o dinheiro.
 
O que o exemplo das duas mãos do presidente Grimsson demonstra é que essa foi uma ação política, não uma fórmula técnica.
 
Expor o mercado ao diálogo direto com a democracia, leia-se, com o discernimento e as escolhas da sociedade, é o pulo do gato para escapar à rendição incondicional à chibata insaciável dos impulsos rapinosos.
 
A Islândia não descobriu a pólvora, mas teve a coragem de usá-la em proporções adequadas na hora certa, contra um alvo devastador.
 
Num mundo em que a ubiquidade das finanças desreguladas gera a crise e avia a receita para seus efeitos, sem espaço para uma segunda opinião, ela ousou mudar as instâncias ordenadoras do seu futuro até então capturadas pela insanidade financeira.
 
A metáfora do dirigente islandês, note-se, dirigente de um governo de centro direita, remete diretamente à encruzilhada brasileira.
 
Seu cerne é a questão do poder subjacente às escolhas políticas que se disfarçam em ciência econômica.
 
Aquilo que ele denomina ‘a mão da democracia’.
 
Engana-se quem supõe que a escolha islandesa envolvia grandezas singelas sendo por isso foi tolerada.
 
A quebra de seu sistema financeiro gerou um apreciável rombo da ordem US$ 85 a mais de US$ 100 bilhões nos credores europeus.


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