Trans em debate: Existe ex-travesti?

BY: NETO LUCON 


Joide passou 20 anos como travesti e hoje é casado com mulher e pai

Depois de muito se falar sobre cura gay e dos problemas causados pelas tentativas de conversões, dois casos chamaram atenção na mídia ao falarem sobre transições nas categorias de gênero. Trata-se de pessoas que se auto intitulam ex-travestis e que, depois de uma vida trans, afirmam terem se arrependido e “voltado a serem homens".

O primeiro é o pastor Joide Miranda que, ao confundir gênero e sexualidade, diz que “se curou” do “estado de homossexualidade” ao portal G1. Depois de viver como travesti por mais de 20 anos, se prostituindo na França e Itália, ele volta a se vestir como homem e atualmente é casado com outra missionária.

Hoje restaurado pelo poder do evangelho eu posso afirmar que ninguém nasce homossexual. A homossexualidade é uma conduta aprendida e ela pode ser desaprendida”, afirmou.


No Câmera Record, Sergio Luiz de Souza revela que se descobriu trans aos 13 anos, aos 15 colocou silicone e aos 17 anos foi para a Europa se prostituir. “Aí comecei a cheirar heroína, muita droga e começou a minha destruição”, diz ele, que passou mais de 30 anos como travesti e, hoje se define como ex-trans e ex-criminoso.
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Sergio Luiz: "Quando a gente cai nas drogas, paga um preço caro"

Ao responder se sente saudades da vida de travesti, Sérgio chora e diz: “Quando a gente cai nas drogas, a gente paga um preço muito alto. É um preço caro e, hoje, não era nem para eu estar vivo”, justifica ele, que é voluntário em um projeto que recupera dependentes químicos e que é casado há dois meses com uma mulher. Sergio diz querer ser pai.

Mas pera aí! Ex-travesti existe? É algo comum no mundo trans? De alguma maneira, o estilo de vida muitas vezes marginal pode interferir nesta re-transição de gênero? E a terceira idade – que é algo novo no grupo trans – também pode interferir nesta questão? Abaixo as respostas, opiniões e o debate.



LIROUS K’YO FONSECA: “A cura gay não atinge especificamente o grupo T, porque nem todos trans são gays. O que acontece muito é a ilusão de um gay que acha que pode ser travesti ou transexual, acreditando no fator escolha [que não existe], retomando posteriormente ao estado gay de ser. Querer ter nascido do sexo oposto não é o suficiente para uma pessoa se tornar travesti ou transexual, vai muito além.

Muitos fazem isso em busca de fetiche, sexo ou dinheiro. E isso queima as meninas e meninos que nasceram nesta condição, jogando-as todas para o lado fetichista, dificultando o respeito na sociedade machista que vivemos e reproduzimos. O que eu digo grosseiramente é: “Se contente na condição que você nasceu e não tente se apropriar de uma realidade que não condiz com a sua identidade de gênero”.

Portanto, tenha certeza de que você realmente está enquadrado na condição de T, pois tanto o processo de ida quanto o de volta é muito doloroso. A beleza não é o fundamental para ser um indivíduo T, vai muito mais além. 

Nunca pensei em abrir mão da identidade feminina, mas já houve de eu retardar o máximo. Não podia nem imaginar que eu cairia na prostituição por causa da minha condição. Aliás, muitas também também estavam com medo de cair em um lugar que não nos sentíamos e que limitava a nossa existência. A condição trans até traz certo glamour, mas muitos acabam abstraindo por esse receio. 

O fato central da “cura gay” é que nenhum órgão público pode interferir na forma que se faz ciência. Quem decide se deve ou não ser tratado, não pode ser uma comissão de direitos humanos e, sim, os profissionais que passaram anos estudando para que chegasse a essa conclusão. Cura gay é piada.




DUDA BARRETO: “Todos os casos que já vi sobre ex-travesti estavam ligados a vontade de deixar as drogas, o roubo, a prostituição, a exposição, a violência, a solidão, o afastamento da sociedade e da família. Então, elas se agarram nesta mudança física como se fosse a salvação para toda sua conduta ‘errada’ perante essa sociedade que a recrimina.

Conheci pessoalmente uma ex-travesti, que resolveu deixar de ser travesti, após se jogar do terceiro andar do seu apartamento e quebrar as pernas, porque estava sob efeito do crack. Aí sua família fez ele escolher e ele escolheu voltar a sua condição masculina e morar com a família. São escolhas, que podem mudar apenas o exterior, mas nunca o interior. Jamais deixará de estar no campo da homossexualidade.. 

Por sua vez, há travestis na terceira idade, que se prostituíram a vida toda sem ter êxito financeiro e sem estudo. Chegam a um ponto que já não conseguem sustentar a vida cara de uma travesti, que sempre tem que estar bonita para seus clientes e se manter ativa na concorrência e se rendem a uma vida de homem. Nela, terá custos mais baixos e será mais prática e aceitável para viver a sua velhice. 

Podemos mudar as roupas, as formas do corpo e viver o teatro que a vida em sociedade nos impõe, mas nunca mudaremos o nosso sentimento, a nossa alma, os nossos desejos, o nosso íntimo. Ex-travesti, sim. Ex-gay, jamais”.




EDUARDA LOURENÇO SILVA: “No meu conceito, não existe ex-travesti, primeiramente porque ser travesti não é uma escolha que você faz na vida. Ninguém acorda de um dia para o outro e diz: ‘Hum, hoje eu quero ser travesti’. Travesti vai muito além de você vestir roupas femininas, isso é um mero detalhe. Ser travesti é ser feminina de corpo e alma, é criar a mulher que você sempre sonhou ser. 

Às vezes por pressão da sociedade e da família, as pessoas deixam de ser quem são. Mas penso: O que vai adiantar fazer os outros felizes se não somos felizes? É isso que eu acredito que aconteceu na vida do pastor das reportagens. Ele pode até ter deixado de ser travesti, mas ex-homossexual nunca, porque não é uma escolha, é uma condição de vida. 

A marginalidade e a terceira idade não atrapalham o ser travesti, já que a marginalidade é uma escolha que a pessoa faz na vida. Afinal, mercado de trabalho para trans é difícil, mas não é impossível. E a terceira idade não deve ser vista com um problema, mas como orgulho de ter chegado até ela. A única vez que pensei em mudar foi quando a mulher que existe presa dentro de mim gritou lá no fundo: ‘Eu quero ser feliz’.




FERNANDA VERMANT: “Eu acredito que exista ex-travesti, sim. É algo que pode ser facilmente mudado, caso a pessoa necessite ou queira. Porém, não é tão comum. Penso que a questão de ex-travesti que vira pastor não é um caso de alguém que decidiu ser homem, mas de alguém interessada em dinheiro e mídia para chamar atenção.

Conheço travestis que adentraram na identidade feminina com seus 30, 40 anos... Isso não é um problema e, hoje em dia, é fácil qualquer homem poder 'virar mulher' com as cirurgias modernas. Eu acho que é por isso [essas mudanças] que existe tanta burocracia para uma mulher transexual conseguir finalmente 'mudar de sexo', tendo tantas exigências e laudos médicos e psiquiátricos.

Eu cresci em uma família evangélica, então sempre lutei muito contra minha identidade. Porém, minha família entendeu que não seria uma fase, uma rebeldia, mas uma busca por algo que eu era. O importante é ser feliz e deixar os outros serem. Se quer ser travesti, seja. Se quer voltar a ser homem, volte. Se virou pastor - e daí? - seja feliz e não fique tentando converter e magoar o próximo. Não é mesmo?




KIMBERLY LUCIANA: “Ex-travesti é apenas alguém que passou a se vestir com roupas de homem. Mas afirmo: travesti que é travesti, morre travesti. Acho que, se o ser humano desejou voltar para o armário, ele tem todo o direito e até o respeito. Mas, se ele generalizar todas pelos seus fracassos na vida e condenar nosso modo de viver, isso é desrespeitoso.

Vejo que o pastor em questão diz que ganhou muito dinheiro na Itália. Então, porque não doou tudo a Igreja, já que é um dinheiro ‘sujo e de prostituição’? Tudo leva a crer que, a saída de algumas pessoas com desvio de caráter, dá-se por elas envelhecerem e não ganharem mais dinheiro na putaria. Querem voltar a ser ‘homens’ para vender o corpo para Deus!

Acredito que essas pessoas vão vivem em sacrifício com elas mesmas, lutando contra os desejos sexuais, reprimidas e distribuindo o ódio, a transfobia em suas pregações nas igrejas. Quando assumi a minha travestilidade, tinha conhecimento de que não seria tarefa fácil enfrentar toda a sociedade. Mas as fortes vão superar tudo isso até a morte.



ALESSANDRA OLIVEIRA: “Existe mais coisas entre o céu e a terra que a gente possa imaginar. O nosso mundo é cheio de diversidade e, cá entre nós, o ser humano é uma criatura que esta em constante evolução. E evolução é algo exclusivo, pessoal, intransferível e que não merece julgamento de outro.

Sobre o pastor, penso: Se ele está vivendo de verdade o que ele diz e prega, ótimo que continue assim, pois acho que o ser humano em geral tem de evoluir para melhor. Eu, por exemplo, sou a história de evolução dele ao contrario. Eu era evangélico, sai da igreja e depois de muito tempo me encontrei me assumindo travesti, mantive o meu trabalho, a minha família e procurando respeitar tudo e todos. 

Ele diz que não era feliz por viver uma vida de prostituição. Mas a prostituição, diga-se de passagem, é uma profissão conturbada, não só para as travestis, mas para qualquer pessoa que viva deste mercado do sexo, pois é um campo com muita violência, drogas, competição... Olha, respeito muito as meninas que vivem e sobrevivem do mercado do sexo sem se envolver com essas coisas.

Por outro lado, com essa noticia de “cura gay”, ele está desclassificando os gays, travestis e lésbicas que são felizes e completos. Estão pintando o público LGBT como tristes, confusos, drogados e, o pior, que devem passar por tratamentos. Em minha opinião, é pura conversa, pois existem gays até psicólogos e, aí como é que fica? 

Em vez de querer 'curar' alguém, devemos pensar em ajudar as pessoas a se encontrarem, pois muitas estão apenas confusas. Temos que ter um apoio para viver bem conosco, sem imposição, sem pressão psicológica para retornar ao armário. Pois ele é uma grande e solitária prisão, sem grades". Via nlucon