Os 50 tons de cinza do Facebook: identidade sexual, minorias e o indivíduo

Por Marcelo de Mattos Salgado
Identidadesexual
Quem acredita que toda maioria é opressora por definição?
A ideia é dramática, mas merece ser visitada — mesmo que apenas para algumas reflexões. Alguns dizem que a democracia é a “ditadura da maioria”: uma maioria numérica, não necessariamente simbólica ou ideológica. Ferreira Gullar já tocou no assunto em 2013. De minha parte, creio que, de certa forma, “ditadura da maioria” pode fazer algum sentido se considerarmos que a democracia se baseia em quantidade — de votos — e iguala a qualidade dos mesmos, já que nenhum voto é melhor do que outro. Mesmo com suas imperfeições, ainda fico com o ex-premiê britânico, Winston Churchill: a democracia é a pior forma de governo, a não ser por todas as outras.
Minorias everywhere
Para responder mais adequadamente à pergunta que abre o texto, teríamos que definir “maioria” (e, portanto, “minoria”) como uma categoria numérica e/ou político-ideológica. Em outras palavras: podemos ter uma maioria estatística — uma parcela maior da população — que, simbolicamente, seria “oprimida”, vitimada socialmente por uma minoria. Algo interessante é que tal minoria (estatística) “opressora” pode consistir em um pequeno grupo de ativistas políticos agressivos e sindicalistas radicais; ou em poucos banqueiros muito ricos que monopolizam um mercado.
A última opção é o que sugere, em certa medida e à época, o filósofo alemão Karl Marx em meados do século XIX: um olhar que, em linhas gerais, divide a sociedade entre opressores e oprimidos. A burguesia, grupo que controlava os meios de produção, era o elemento “opressor”, o vilão da narrativa. Do outro lado, aos olhos de Marx, havia o proletariado, uma classe “oprimida” e virtuosa por tal condição. Ou seja, uma visão de mundo um tanto simplista e maniqueísta, que já pré-determina bem e mal, opressores e oprimidos. Cerca de 150 anos depois, a mesma fôrma de bolo ideológica continua a ser aplicada a novas “minorias” — em todos os casos, politicamente muito oportunas quando têm seus votos costurados em um sistema… Democrático, de maioria. Será que a realidade não é muito mais complexa?
Sexo e identidade digital
Ideologias à parte, temos hoje uma minoria numérica com uma história muito interessante. Desde 1970, o movimento gay existe de maneira organizada no Brasil — e segue transformando-se ao longo do tempo. Uma ótima lembrança que tenho da primeira década de 2000, quando ainda morava na cidade do Rio de Janeiro, é das boates GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) da zona sul: eram famosas entre muitos jovens (não importava a identidade sexual) pela música e ambiente. De lá para cá, GLS tomou outros caminhos e ganhou letras. Hoje, a denominação usada no Brasil tem ordem diferente e é bem mais ampla: LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). O que era um movimento modesto ganhou organização e, também, caráter político — fortificado pela ampliação do grupo e da sigla.
Pode-se imaginar que este crescimento em representatividade do movimento LGBTTT (internacionalmente, também chamado de LGBTQ) é um ingrediente para compreendermos a recente decisão do Facebook: conceder ao internauta mais de 50 opções de identidade sexual — para muito além de apenas “Masculino” (Male) ou “Feminino” (Female). Ainda indisponível no Brasil, a novidade amplia, e muito, as possibilidades do espaço social digital específico ao Facebook. Permite ao site, como nunca, refletir mais precisamente as identidades (sexuais) de seus usuários. Mas, qual a diferença entre sexo, gênero e orientação sexual, por exemplo?
A última década, em particular, trouxe muitos desdobramentos para a compreensão das facetas que possivelmente compõem a identidade sexual de um indivíduo. Listo, a seguir, cinco aspectos que concedem uma perspectiva sobre o assunto, de acordo com a Associação Americana de Psicologia: 1) sexo, que diz respeito à condição biológica da pessoa (cromossomos, gônadas, hormônios, presença de ovário, pênis etc.). Pode ser masculino, feminino ou intersexual (casos raros, que misturam características biológicas dos outros dois sexos). Sexo também se relaciona estreitamente a dimorfismo sexual. Por exemplo: a altura média dos homens adultos brasileiros é de 174 cm; mulheres adultas de nosso país, por sua vez, ficam em 161,1 cm — uma diferença de 8% na estatura. Quanto à parte superior do corpo (braços e torso), mulheres têm, em média, metade da força dos homens. 2) Gênero seria a expectativa social alinhada ao sexo do indivíduo; 3) identidade de gênero é como um indivíduo vê a si mesmo (como homem ou mulher); 4) expressão de gênero indica como uma pessoa se veste, se comporta e seus interesses. De acordo com essa teorização, um homem biológico (o sexo) pode ver a si mesmo como uma mulher — sua identidade de gênero: é o que chamamos de transgênero. Neste exemplo, o homem que se vê como mulher pode, ainda assim, vestir-se “como homem” e ter “interesses masculinos” — esta seria sua expressão de gênero. E, por último, temos 5) orientação sexual, que responde por quem uma pessoa sente atração sexual: é o que costumamos chamar de hetero, homo ou bissexualidade.
Indivíduo
Como vimos acima, há muitas camadas atualmente consideradas para (tentarmos!) definir a identidade sexual de uma pessoa; e creio que algo assim, complexo, merece mesmo menos branco e preto e mais tons de cinza. Observar como as tecnologias digitais — e os espaços sociais criados por elas — afetam e são afetadas por questões humanas tão profundas quanto sexualidade é fascinante. Dito isso, ampliar possibilidades para as pessoas afirmarem e se sentirem confortáveis com suas identidades sexuais é algo relativamente fácil em contexto digital: basta haver vontade e criar os menus e opções. Mas, e fora da Internet?
Menu do Facebook com nova opção de identidade sexual
Menu do Facebook com nova opção de identidade sexual
Nesse sentido, destaco que a questão já atravessou os campos digital e presencial (de carne e osso) e esbarra na legislação, o que pede uma análise mais específica: uma nova lei começou a vigorar no estado da Califórnia, nos E.U.A., alguns meses atrás. A AB1266 permite a estudantes transgêneros, por exemplo, escolher o banheiro que quiserem usar de acordo com o gênero a que sentem pertencer. Outro aspecto da lei é dar àqueles que se identificam com o sexo oposto ao de sua biologia a possibilidade de participar em times esportivos do outro sexo. Em outras palavras, um homem biológico que se percebe mulher pode, por exemplo, jogar no time das mulheres (e vice-versa); este é o caso de Pat Cordova-Goff, nascido biologicamente homem, mas que nunca se sentiu como tal: hoje, Pat joga softball (um tipo de beisebol mais comum entre as mulheres) com as garotas.
Entre aqueles que discordam da lei, o argumento mais comum esbarra no dimorfismo sexual, já abordado, e as diferenças físicas muito pronunciadas (força e estatura médias, por exemplo) entre homens e mulheres — o que, em teoria, tornaria desleal a presença de homens biológicos em um time de mulheres. Outra alegação é de pais que não querem que sua filha, por exemplo, frequente o mesmo banheiro ou vestiário que um homem biológico que se considera mulher. Ainda, algumas pessoas acreditam que crianças ou adolescentes mal-intencionados vão alegar que “sentem ser do outro sexo” para criar situações constrangedoras e até perigosas. Trecho denotícia já referida sobre a lei diz (tradução minha):
Oponentes do projeto de lei têm a preocupação de que a mesma sacrifica a privacidade de estudantes que não são transgêneros e que podem não sentir-se confortáveis ao usar um banheiro ou vestiário com alguém medicamente considerado do sexo oposto.
Tais preocupações também com a individualidade daqueles que não são alunos transgêneros me trouxeram à memória uma frase da filósofa americana Ayn Rand. A citação nos remete ao início deste texto e a reflexões sobre minorias, opressão e, também, liberdade de expressão e limites individuais: “A menor minoria na Terra é o indivíduo. Aqueles que negam os direitos individuais não podem se dizer defensores das minorias” (ênfase minha).
A discussão é densa e necessária — e, felizmente, há algumas soluções disponíveis. Uma possibilidade, com seu natural custo, é o que já faz a Universidade de Washington, por exemplo: existe ali um centro com banheiros e espaços gender neutral, ou seja, de gênero neutro. É bem mais razoável do que construir mais de 50 tipos de banheiro mundo afora, à moda Facebook…
Bendita tecnologia digital. Né?

Fonte: Sociotramas