No Brasil há ‘passos lentos', mas pequenas mudanças têm ocorrido, destaca professora sobre o Dia da Consciência Negra
Política
João Rocha
Estenio Mota
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| Na UFMT, Campus Araguaia, unidade de Barra do Garças, será realizado nesta quarta evento voltado para do "Dia da Consciência Negra - imagem Ana Maria. |
A Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Araguaia (UFMT/CUA) realiza
evento voltado para a formação para a formação de conhecimento sobre a realidade
brasileira quanto à consciência negra, considerando o mês voltado para o tema.
As atividades ocorrem nesta quarta (19), a partir das 19h, na unidade de Barra
do Garças.
No Brasil, o Dia da Consciência Negra é comemorado no dia 20 de novembro, mês que se faz homenagem ao líder quilombola Zumbi dos Palmares. A busca, segundo os organizadores, é de criar ambiente para a reflexão sobre a luta da conscientização social. Destacar a realidade, importância e as contribuições da população negra para a cultura e o crescimento do Brasil.
Para trata sobre o “Dia da Consciência Negra”, a Agência Focaia conversou com a
professora e atual coordenadora do Curso de Letras da UFMT Araguaia e um dos membros da comissão organizadora do evento, Mônica dos
Santos. Pesquisadora do assunto, ela descreve a importância da data no Brasil, indicando
as mudanças que ocorreram ao longo dos anos e avalia a importância do evento
que ocorre hoje na universidade mato-grossense.
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Professora
da UFMT Araguaia, Mônica dos Santos, em entrevista à Agência Focaia -
imagem João Rocha. |
No evento realizado na UFMT nesta quarta (19) será trabalhada alguma temática específica sobre o “Dia da Consciência Negra”? Qual o objetivo do evento?
O objetivo do evento é lembrar da existência desse dia, com uma perspectiva de
um planejamento mais detalhado para o próximo ano, para que a gente possa
desenvolver ações durante todo o ano, e culminar nessa semana, 20 de novembro
de 2026. O primeiro passo é uma tentativa de acaloramento das discussões a
respeito da consciência negra dentro da UFMT Campos Araguaia. A gente sabe que
não é o formato mais ideal, que essas discussões deviam ter sido concatenadas,
não que elas não tenham acontecido. Por que eu falo isso? Porque, por exemplo,
no curso de Letras, a gente tem uma disciplina obrigatória e uma disciplina
optativa que tratam exatamente da questão do estudo da literatura negra. Nós
temos como obrigatório uma disciplina que trabalha com literaturas de
identidades periféricas, que daí a gente inclui literatura afro, literatura
indígena, literatura LGBT, literatura de margem, de uma forma geral. A gente
tem uma outra disciplina que trabalha com cultura da América Latina. A gente vê
todo dia no jornal, todo dia tem uma notícia de alguém que ficou anos preso e
que não devia nada do que estava sendo acusado, mas era negro. Então, isso
bastava para ser condenado. A gente tem projetos no curso de Direito que tratam
dessa questão, tem projetos no curso de Biologia que tratam dessa questão. Então,
a gente precisa pensar em uma forma de deixar esses projetos conversando para
que a gente possa, a partir da realização das coisas que são feitas dentro
desses projetos, organizar uma semana mais contextualizada. Esse evento de hoje
tem a apresentação de um documentário que é importante por duas questões.
Porque fala de um aspecto da cultura negra, que é a capoeira, que também é uma
das formas de resistência usadas pela população negra durante anos e que também
fala de um grupo local. Então, a gente tem esse olhar para o que acontece à
nossa volta. Bom, acho que a gente precisa tocar nesses aspectos, lembrar dos Palmares,
lembrar do Zumbi, lembrar desses homens que estiveram à frente desse processo
longo, doloroso, que ainda não se concretizou.
Como a
senhora avalia a importância da data em que se comemora o Dia da Consciência
Negra no Brasil?
A Consciência Negra, o 20 de novembro, é escolhido a partir de um
posicionamento crítico de reivindicação do movimento negro em 1970, quando se
tem notícia da data de morte do líder Zumbi dos Palmares. A partir daí, o
movimento deixa ainda mais de lado, porque o 13 de maio nunca foi uma coisa
consensual, essa simbologia de abolição, de libertação. Então, a partir desse
conhecimento, eles trocam essa simbologia da data do movimento de libertação do
13 de maio para o 20 de novembro. Por quê?! Porque o 20 de novembro reafirma
que o processo de escravização de pessoas no Brasil nunca foi uma coisa
pacífica. Ele sempre foi gerido por vários movimentos de resistência, e um dos
primeiros grandes vultos é a constituição do Quilombo dos Palmares, do qual o
Zumbi foi o último líder. O Quilombo acaba em 1694, o Zumbi morre em 1695.
Então, o Zumbi é a imagem do último símbolo de resistência dessa organização
quilombola. E isso mostra que o processo de resistência das pessoas que vieram
forçadas para cá em regime de escravização é um processo muito antigo e que o
que acontece no 20 de novembro é mais uma forma de legitimar, a partir de uma
mão branca, de uma pseudo benevolência do branco, esse ato de libertação de
pessoas que nunca, na verdade, deveriam ter sido escravizadas. Então, a gente
tem, no 20 de novembro, um recado para dizer que a história única que fica
sendo contada, repetida, constantemente no registro da história oficial do
Brasil, é falsa. Que as pessoas estão num processo de resistência, de
revolução, desde o momento em que o processo de escravização acontece. Então,
para o movimento negro, para o marco legal de todas as conquistas que a gente
vai ter, a partir de 1970, de conquistas que são reforçadas com a promulgação
da Constituição de 1988, a gente tem, no 20 de novembro, um marco de
resistência. Um marco simbólico de que essa luta é antiga, essa luta é legítima
e esse dia precisa ser um dia de foco para que a gente concentre as discussões
de tudo que foi feito durante o período do ano anterior, para que a gente
tivesse modificações, avanços em relação a questões políticas, a questões
sociais, a questões de acessibilidade relacionadas à população negra
brasileira.
E a senhora viu esse tipo de mudança, em comparação ao ano anterior?
Eu acredito que a gente tem caminhado a passos lentos, mas uma pequena mudança
tem acontecido. Ainda há uma certa resistência, ainda há muita questão da falta
de organização das instituições em relação ao acolhimento desse trabalho, como
as políticas. A gente tem um avanço significativo que eu percebo que é fruto
dessa luta que acontece desde 1970 com o fortalecimento do movimento negro, que
é o aumento das publicações de pessoas negras, que começa lá com a instituição
dos cadernos negros, pelo Grupo Quilombô, de 1978. Então, as editoras têm
olhado com maior atenção esse público constituído para esse tipo de produção
literária. No quesito literatura, que eu acompanho sempre, até por interesse de
pesquisa, eu percebo que de 2020, quando eu começo a tese, até agora a gente
teve um avanço muito grande. Então, o número de publicações, por exemplo, de
romances, que é um tipo de obra de publicação individual, que é mais cara
porque não pode ser feita em grupo. O Quilombô hoje é uma organização de
quilombo literário, que permite que várias pessoas publiquem no mesmo número e
dividam os custos entre elas. Quando a gente fala de romance, essas publicações
coletivas terminam girando em torno de contos, que são textos menores, ou de
poemas. Então, quando a gente fala de romance, a gente fala de uma publicação
que demanda individualidade, que demanda um custo maior. Por isso, até o meu
interesse de pesquisa nessa área. Eu percebo que de 2020 para 2025, a gente
teve um avanço considerável no número de publicações, por exemplo, de romances
de mulheres negras. Então, tem mais mulheres conseguindo acessar as formas de
publicação e de divulgação dessas publicações. Tem uma autora em especial que
eu pesquisei na tese, eu lembro que quando eu comecei a pesquisa, ela quase não
existia, que é a Lilian Guerra. Em 2023, ela publica o romance O Céu para os
Bastardos, que é publicado por uma editora maior. E já em 2023, ela é tema de
uma matéria do Globo Repórter.
Como a senhora avalia o racismo brasileiro, ao longo tempo se formou mais da
consciência sobre a igualdade racial ou há ainda muitas batalhas pela frente?
O racismo é uma coisa o racismo brasileiro é uma coisa que ficou velada, ficou
escondida atrás da ideia de miscigenação, que o Gilberto Freire comenta. Existe
uma construção discursiva a respeito de uma convivência pacífica entre raças no
Brasil, lembrando que esse conceito de raça é um conceito que já caiu por terra
há muito tempo, mas essa relação entre negros e brancos do Brasil, a partir do
Gilberto Freire, das coisas que ele vai colocar em Casa Grande, Senzala, por
exemplo, ela termina tendo um mascaramento. A gente se respeita, todo mundo se
gosta, quando, na verdade, a gente continua tendo práticas e condutas sociais,
condutas pessoais, que dizem totalmente o contrário. Então, existe um
enraizamento estrutural em relação ao racismo dentro do Brasil, ele está em
todos os lugares, quando a gente olha para uma pessoa negra, a gente
dificilmente imagina que ela ocupe lugares de trabalho que fujam do estereótipo
do uso de força física para esse trabalho ser realizado. Até ontem, teve uma
fala bem polêmica da vereadora, que disse que alguém achou estranho que ela
tivesse uma assessora negra dentro do gabinete dela. Eu ainda comentei com o
professor Arley, eu falei se fosse a tia do café ou a tia da limpeza, estava
tudo ok, mas uma assessora, que é uma pessoa que recepciona as pessoas, que é
uma pessoa que se posiciona nessa relação interpessoal, que faz um trabalho que
usa mais a mão e a cabeça do que o corpo inteiro, fazendo força, limpando,
cuidando, arrumando, está tudo ok. A gente tem uma sociedade que mascara esse
processo de não aceitação, de não reconhecimento da potencialidade da pessoa
negra, que olha para a pessoa negra com muita naturalidade, quando o espaço que
ela ocupa no trabalho é um espaço que exige força física e pouca demanda de
produção mental, mas que não aceita que essa pessoa tenha acesso a espaços de
produção intelectual, é o que acontece quando a gente fala em toda polêmica
causada por exemplo pela inserção da lei de cotas, que gerou um bafafá
gigantesco, como assim as pessoas vão ter direito, e a gente ainda ouve de
muita gente, de muita gente em diversos lugares, eu faço por isso
constantemente, essa situação das pessoas falarem assim, preto, tinha cotas,
passou por isso. E ninguém entende que esse processo da instituição dessa lei
como uma ação afirmativa, ela trabalha especialmente com essa ideia de reduzir,
de diminuir um pouquinho da desigualdade que foi construída durante quase
quatro séculos. Ninguém lembra que as pessoas negras até começo do século XX
não tinham direito a acesso à educação. Ninguém vai lembrar, por exemplo, que o
meu avô aprendeu a ler trabalhando numa fazenda, de madrugada, com acesso de
outra pessoa negra. Então, assim, a gente percebe o racismo em relação a esse
acesso à escolarização, a esse reconhecimento da ocupação desse espaço de
intelectualidade para essas pessoas, a gente percebe o racismo no trato das
pessoas que têm a figura que já devia ter sido extinta da nossa sociedade, que
é a empregada doméstica, que tem, geralmente, uma escala de 6x1. Pouco tempo
atrás conseguiu o direito de hora de entrar e de hora de sair, porque antes
esse direito era regulado de acordo com o bom humor da patroa. A gente vê a
preservação desse racismo quando a gente assiste aos noticiários e percebe o
grande número de trabalhos análogos à escravidão que a gente ainda tem hoje. A
gente percebe esse racismo quando a gente vai para o lado do esporte, que a
gente vê que grandes e geniais atletas ainda são julgados pela cor, as pessoas
esquecem o que elas fazem pelos grandes times e elas olham somente para a cor
da pele das pessoas que estão ali. A gente percebe esse racismo quando a gente
ouve relatos de jovens negros que são abordados pelo sistema policial,
simplesmente por estarem andando na rua.
Podemos considerar o racismo no Brasil como estrutural, com base em
estratégia política, de modo organizar a sociedade uma ordem centralizada de
poder dominante, assentada nas pessoas brancas e da elite econômica nacional?
Certamente. A gente tem um país que foi dividido em capitanias hereditárias,
que foram doadas a pessoas brancas e ricas que nunca largaram esse osso. São
pessoas que estão em uma estrutura política que tem, mesmo não sendo algo
reconhecido, tem uma transferência velada de pai para filho. Se você for
estudar a história política do Brasil, você vai ver que os primeiros deputados,
desde o Brasil República, a gente tem primeiro a monarquia que tem essa
hereditariedade de poder e depois a gente vai ter uma estrutura política de
república que também vai ter essa hereditariedade de poder. Cito dois exemplos,
até assustei que eu vi a pessoa com câncer, falei, meu Deus, essa mulher é tão
diferente. A família Sarney, no Maranhão, que você vai ver que tem sempre uma
sequência. Tem a família do Tancredo Neves, em Minas também. O Aécio Neves, que
é neto do Tancredo, que tenta acessar o poder há muito tempo. E tinha a família
Magalhães, também, na Bahia, que é um outro exemplo muito conhecido dessa suscetividade
de poder. E a gente vai ver que, mais tarde, essas terras que são doadas em
termos de capitanias hereditárias, elas vão sofrer um processo de fragmentação,
elas vão ter outros proprietários, mas esses proprietários, pela lei de terras
no Brasil, não são pessoas negras, porque quando a abolição acontece, a lei de
terras, um pouco antes, é instituída e a lei de terras, já prevendo essa
possível abolição, ela deixa claro que pessoas negras não poderiam ser
proprietárias. E aí, os migrantes europeus, na tentativa histórica de
branqueamento da nação, eles, sim, vão poder se conseguirem passar pelas
barreiras desse processo de migração, que não foi fácil para eles também, mas
eles vêm como convidados, eles não vêm como pessoas escravizadas. Eles podem,
sim, acessar, eles vão ter, sim, direito à posse de terras. Então, a gente tem
uma estrutura que é construída a partir de uma distribuição desigual do que a
gente tem de riquezas naturais, e as pessoas que estão com a posse desse poder,
elas não querem dividi-lo, isso não vai acontecer. Então, assim, quando a gente fala que tem uma estrutura construída, a gente
precisa olhar para detalhes como esse. Essa distribuição dessas terras que
precisavam ser exploradas, cultivadas no Brasil, acontece, ela muda um
pouquinho na marcha para o Oeste, em 50, 60, 70, né?

