Com o ultraliberal Milei, Argentina retoma política de governos autoritários, analisa Pedro Russi pesquisador da UDELAR-Uruguay

Especial - América Latina

Política


Raissa Ali

 

A vitória do atual presidente de extrema direita na Argentina, levantou muitos questionamentos na região e mundo afora sobre os rumos que o país vai seguir após a saída do poder de partidos tradicionais e históricos. Ao superar os políticos tradicionais, incluindo grupos políticos, como o Kirchnerismo, Javier Milei inicia o governo levando à luz propostas radicais apresentadas para o eleitor durante campanha eleitoral, com base em visão social conservadora, ultraliberal, na perspectiva do anarcocapitalismo, como repetiu em discursos eleitorais e reafirma na Casa Rosada.

 

Como seria de esperar, o começo do seu mando encontra um país mergulhado em profunda crise, que se arrasta por anos no país, ou talvez décadas, alternando momentos de alguma tranquilidade econômica e outras de um país mergulhado em depressão social, com assustadora crise financeira, muito semelhante a esta, enfrentada pelos argentinos neste momento.

 

Como o início do governo de Milei, entra em questão o relacionamento entre Brasil e o histórico vizinho comercial latino-americano. O presidente Milei muitas vezes, durante os debates políticos, deixou evidente as suas dificuldades em se aproximar de países, cuja política distancia de sua visão social. Na lista Brasil e a China, privilegiando, assim, relações com os Estados, nações da Europa e Israel, no Oriente Médio.

 

Diante deste quadro político da Argentina, que responde a uma dinâmica de ciclos políticos regionais, a agência Focaia realiza entrevista com Pedro Davi Russi Duarte que é pesquisador sobre a política e meios de comunicação regionais. 


Professor e pesquisador pela Universidad de la República (UDELAR-Uruguay), no departamento de ciências sociais, também é docente colaborador no PPG-Comunicação, FAC (Faculdade de Comunicação) na Universidade de Brasília (UnB). Russi é Pós-Doutorado pela Universidad de Navarra (Espanha), doutor e mestre em comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Russi também é pesquisador do Sistema Nacional de Investigadores Uruguaios e diretor do CISECO (Centro Internacional de Semiótica e Comunicação).

 

Na visão do professor, Javier Milei promove o retorno dos governos autoritários na Argentina, seguindo a trilha da política autoritária latente na América Latina. Conforme Russi, é difícil saber o futuro do presidente ultraliberal, com suas provocações, mas afirma que a desconstrução do Estado argentino já teve início, tornando o país menos social e mais voltado para as lógicas da exploração por forte política de mercado, no atendimento a determinadas lógicas externas.

 

Na entrevista a seguir, Russi descreve as característico do presidente como alguém que usa o espaço público à semelhança de um show de mídia, fazendo avaliação da atuação de Milei nos veículos de mídia argentina, de modo a convencer a população para suas mensagens, que reproduzem o sentido daquilo que é publicado nas redes sociais. Talvez uma realidade que vai além da Argentina, que chega ao Brasil e provavelmente faz parte da realidade da política mundial, neste momento.



Javier Milei presidente eleito na Argentina, com política ultraliberal, com proposta de 

redução do Estado e mudança radical do modelo kirchnerista de governo 

- imagem reprodução/site Página 12.



Na Argentina, um desconhecido do meio tradicional político venceu as eleições. Javier Milei na corrida eleitoral no final do ano passado superou o peronismo e chegou à presidência da República. Como analisa o processo eleitoral no país, com a eleição de um ultraliberal?

 

É interessante pensar, tem uma coisa que foi se criando, um discurso que permeou muito, e, aconteceu o mesmo com Bolsonaro, que é que eles são sujeitos fora da política os “outsider”. Milei, no caso da Argentina, não é um desconhecido no meio tradicional político, ele foi político, fazia parte do legislativo como deputado. Então, não é uma pessoa fora, “outsider”, da política. É interessante como aconteceu o mesmo com o Bolsonaro; essa ideia como que o Bolsonaro outsider. E não, ele foi durante 26/27 anos  deputado. No caso do Milei ele não é um desconhecido para o meio tradicional político, ele faz parte do quadro político da Argentina, seja como deputado, seja como senador. Então, não é alguém externo, outsider ao sistema político.

 

Ele se potencializou antes disso num âmbito midiático. Ele fazia parte de um programa de auditório onde ele falava, gritava, xingava e falava mal de todos os políticos, mesmo ele também depois sendo do sistema político. Ele foi criando um personagem, foi montando, e os meios foram estimulando esse personagem deste ponto de vista do engraçado, do riso, do humor, do humor muito estranho. Sempre o humor dele era um humor que degradava o outro, e sempre o outro, se não é sempre é quase sempre, 99% era mulher, então, a degradação do outro, a redução do outro ao nada, que não conhecia, que não sabe… 

 

Ele foi se colocando no lugar dele ter a verdade absoluta, é interessante como fazendo esse personagem, rindo desse personagem, o pessoal chamava ele de maluco. Então, esse personagem foi entrando numa dinâmica política que permite a esse personagem fazer parte, a conformar o quadro político. Embora isso não seja totalmente novo, temos no caso do Brasil a ilustração mais forte o Tiririca.  No caso de outros países, como na Itália, o caso da Ucrânia, onde pessoas que fazem parte de um campo  trazem esses elementos do grotesco midiático para o âmbito do político.

 

Então não é que eles são outsiders, eles estão conformando, configurando uma forma de fazer política no qual a política não é alheia a essa dinâmica midiática do show, da espetacularização do grotesco, do exagero, da violência verbal, simbólica e dos corpos. Então lembramos, quando Bolsonaro fala para Rosário: “eu não estupro você porque você é feia”.  Esse tipo de violência é uma violência dos programas de auditório, onde isso é muito comum. Uma questão que tem que ficar clara é: o Milei não é um outsider da política, ele fazia parte do quadro legislativo da política da Argentina, porém, ele está vindo do ambiente dos programas de auditório da Argentina que tem muita audiência.

 

Ele foi construindo uma personagem que facilitou essa dinâmica, [deste modo] que vem sendo construída a política. Então [esse é] o processo político eleitoral na Argentina, com a eleição desse presidente ultraliberal ou neofacista ou fascista, porque não é só ultraliberal ou anarcocapitalista como ele se chama.

 

Esse tipo de processo eleitoral no país que aparece esse presidente vai além aqui da esquerda-direita, vai muito além disso. O que chega a presidência da república da Argentina é alguém que vem sendo estimulado por um paradigma que vai além do político, é um paradigma do espetáculo, do show, da exacerbação, isso não é novo no mundo político. Já temos o Berlusconi na Itália, a Cicciolina que é uma deputada italiana que era atriz pornô e depois ela é eleita como senadora, o Brasil teve também pessoas que estavam vindo da área pornô. Isso que está acontecendo que a gente tem que começar a observar a entender de um outro lugar, de um lugar de ter um olhar da complexidade no qual hoje se encontra o cenário político.

 

O kirchnerismo e o peronismo perderam espaço na política argentina, como avalia estas mudanças dos grupos de poder no país?

 

Não sei se o Kirchnerismo perdeu espaço, embora estejam relacionados não é o mesmo, não é que perdeu espaço na política Argentina, eles estão sendo ressignificados. No fato de ser ressignificado tem essas mudanças, então o processo de crises, questão econômica, crise cultural, crise do modelo político, crise das instâncias da democracia. Quando [há as mudanças] elas são atacadas e quando elas passam por uma crise justamente econômica como está a Argentina, uma inflação que agora é pior, mas neste momento não é que perde o espaço, o que perde nesse caso é o peronismo e o Kirchnerismo. Fazendo uma síntese para que se compreenda, o peronismo tem as suas muitas complexidades, para falar um [Juan Domingo] Perón apoiou o nazismo e ao mesmo tempo estava apoiando os trabalhadores. Estou falando isso como elementos dessa complexidade, se pode colocar Peron e Hitler, vai ter uma relação aí na história.

 

Não é que perdeu espaço, está sendo reconfigurado. Como é reconfigurado tem essas mudanças na concepção de poder, na concepção de poder do país, de como se constrói o poder, o que Milei aparece aí é que começa a falar coisas, a expressar coisas que o cotidiano não conseguia expressar, e manifestar em certos espaços, por exemplo, midiáticos. E isso começa a ser entendido como um discurso de toda a população e esse desconforto, numa situação econômica concreta do dia a dia começa a se espelhar nesse discurso proposto por um sujeito que está vindo de um cenário midiático político e começa a tomar corpo também. Esse é o cara que fala as coisas que eu não estou conseguindo falar, que vai dizer que ele vai eliminar a casta, sendo ele parte da casta. Agora a gente vê, e isso a gente já sabia, não vai eliminar nada da casta, ele está governando para a casta.

 

Se a gente não começar a entender como o pessoal de entrega, por exemplo, ele teve muitos pontos altos, a quantidade de votos, das pessoas que entregavam alimento, quando você compra eles vão na moto e entregam: o Rappi. Isso faz com que uma voz, um grupo da população que estava numa situação de crise real econômica encontre um espelho em alguém que está prometendo piorar a situação, realmente jogar você no lixo da história econômica, arrebentar contra tudo que tem, como está fazendo agora e mesmo assim você vota. Não é uma questão de perder espaço,  é uma questão que está se configurando, redesenhando o lugar. Na minha leitura, o lugar do político como elemento catártico [quem se torna referência para o eleitor, no leitor de uma história], por isso, então o elemento religioso também está no cenário.

 

O que representa para a América Latina a vitória de Milei? Algum reflexo na política regional? A vitória de Milei pode provocar uma onda na política de ultradireita nos países latino-americanos?

 

É importante pensar que a vitória de Milei é o resultado de uma dinâmica geopolítica muito além da Argentina, além da América Latina. É um movimento geopolítico que faz com que, neste caso a Argentina, mas a gente pode ver em outros países como Equador, Brasil e também o chile, atualmente, com certas leituras da política bastante complexa. Não é que ele provoca uma onda política de ultradireita, ele é o resultado de uma onda política ultradireita, neofacista, nazista, de um capitalismo exacerbado, que você coloca como política de ultradireita, mas não é que ele vai provocar uma onda, ele é o resultado.

 

Não só de uma onda, nesse momento, ele é resultado de uma onda que está vindo antes da ditadura na américa latina, antes da ditadura nos anos 60, para tomar geral, teve outras antes, mas tomando as ditaduras dos anos 60, Uruguai, Argentina, Chile, Brasil, Paraguai…, tomando esse contexto da região mais próxima, que eu chamo do bairro mais próximo da ditadura, isto que estamos observando agora é consequência também daquilo.

 

Então não é que Milei provoca uma onda, ele não é gerador de nenhuma coisa. [Então] O que ele é, um ator político “melhorado”. Quando falo melhorado não como melhor se não mais uns 5g não uns 3g. Dessa forma de entender a política, onde somente alguns têm direito a viver, tem direito a certas coisas, enquanto o resto não. Por isso que ele ataca a educação, ele ataca a saúde, ataca a economia, ele quer destroçar a economia, então vem o paradigma da destruição e o paradigma da eliminação, aí a gente pode falar em necropolítica ou de pulsão de morte para tomar autores e temas que estão agora.  Então a geopolítica permite que o Milei,  que atores como Milei e Nayib Bukele, em El Salvador, tenham seu lugar e seu momento de espetáculo. A questão é que esses 15 minutos de espetáculo, metaforicamente, geram uma destruição do tecido social, da interrelação social, da forma como a sociedade se relaciona, de como o outro, a alteridade [a relação com o outro] é entendida., de como os direitos das pessoas, o direito à educação, o direito à saúde, o direito de uma determinada forma, o direito a migrar, essas questões são eliminadas.

 

Então Milei é uma engrenagem dentro de um sistema de pensamento, que faz com que ele tenha essa força e esse lugar, que ele é uma força e não tem uma força pelos votos, porque ele foi eleito por uma quantidade pequena, ele não tem representação no parlamento, ele é muito pequeno. Por isso, tem uma primeira volta, um primeiro turno, que ele teve pouca votação e o segundo que teve mais, mas o que define o parlamento é o primeiro, então, ele não tem um poder político.

 

Ele passa o poder por uma outra dinâmica de relacionamento político, e ele sustenta esse poder numa questão transcendental, por isso o religioso de Milei é muito forte. Ele faz o uso de uma matriz religiosa que vai além de ele ter ou não ter uma religião, e sim o que ele é, mais do que um representante de Deus na terra. Ele é o interlocutor, e ele não somente interlocutor senão é ele quem recebe a diretriz.  As decisões dele são tomadas num outro plano, ele fala com os cachorros mortos, então, os cachorros dele que vão dando o caminho  pelo qual a Argentina tem que ir. É nesse nível que estamos falando, temos que começar a compreender porque não é só ele, a gente tem que entender que ele é resultado de uma dinâmica, de um sistema geopolítico que é maior do que Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Paraguai sozinhos, vai além disso.

 

Alguma alteração nas relações entre Brasil e Argentina, com a vitória do ultraliberal que fez duras críticas ao presidente brasileiro e chinês durante a campanha? 

 

Sim, tem alterações na relação entre Brasil e Argentina porque a forma que o Milei fala ao Brasil, principalmente no Brasil se não ao Lula, não são críticas, essa é uma questão, ele não faz crítica ele faz um insulto. Então críticas são feitas sempre, às críticas seja ao governo chinês, seja ao presidente brasileiro, seja à Venezuela, seja à colômbia, não são críticas são insultos.

 

Ele reproduz a lógica do Twitter, porque ele é um presidente que governa por Twitter, nessa lógica midiática do Twitter da notícia falsa, ele traz para o cenário do relacionamento entre países aquela lógica, aquela matriz de expressão que ele utilizava nos programas de auditório. Ele se relaciona não como um presidente de todos e todas as argentinas, está se colocando como alguém que está num painel da TV, de um programa de auditório, daí que ele fala. Não é que ele faça duras críticas, ele não faz nenhuma crítica, o que ele faz é um insulto, diante do insulto a primeira reação é: “eu não me relaciono com alguém que está me insultando”.

 

Quando alguém insulta alguém, ou seja, quando uma pessoa insulta outra, já coloca no ato de insultar num lugar menor, num lugar de exclusão, num lugar de que não serve para nada, por isso eu insulto. A minha moral que vou autoconstruindo de que eu posso insultar, reduzir, degradar você, porque eu estou num lugar que não só está me permitindo fazer isso - a questão de o poder fazer na linha do espetáculo, do show, do programa de auditório, “eu posso fazer isso” -, mas quando eu estou como presidente do país eu não posso fazer isso pelas relações internacionais.

 

Justamente pelas relações, quando o Milei também se referiu ao Papa dessa forma também queria romper relações com o Papa, achava ele terrível, xingando ele, e todas essas coisas. O Papa agora abraçou ele, mas a relação que ele estabelece com o outro é de insulto, sempre. Em todos os programas também, nas entrevistas ele não se relaciona desde uma perspectiva analítica-crítica, então não podemos colocar nas falas dele a matriz de crítica, as falas dele são insultos, sempre, nessa lógica que eu expliquei anteriormente. 

 

Num país em crise, com alta inflação, desemprego e grande parte da população vivendo abaixo da linha da pobreza, o atual presidente argentino terá condições reais de cumprir as promessas de campanha, como crescimento econômico, desenvolvimento e melhoria da renda dos argentinos? A população argentina poderá suportar aumento da crise?

 

Ele não vai cumprir as promessas da campanha, por isso que eu falava que na matriz que ele está caminhando, ou seja, pela plataforma que ele caminha, não interessa o que ele fala num futuro. A narrativa de futuro de aquilo que eu posso prometer, pensamento político do que eu quero fazer, não entra aí. É totalmente imediato, totalmente espontâneo. Agora eu quero falar, falo, o que estou pensando, sei lá porque, eu falo. Não interessa se isso vai ser feito ou não, é o momento, é a lógica do Twitter, é o momento, é um determinado número de caracteres, uma determinada redução do futuro, ou seja, relação passado, presente e futuro não é levado em conta nessa questão das promessas simplesmente invento coisas.

 

Aqui tem uma questão interessante, uma questão religiosa: “e o verbo se faz carne,” como se isso que eu falo se transforma na realidade. Imediatamente então eu vou criando um mundo que me permite nesse desespero - de uma população que está numa crise, que não consegue chegar ao final do mês, que agora piorou com o governo de Milei, aumentou a pobreza de 47 passou para 58. Uma coisa assim, então não interessa isso pra ele, vai caminhando na sua construção do seu mundo, aquilo que eu faço é a realidade ponto, e aquilo que eu vou falar não interessa se vai acontecer ou não, não interessa se eu faço a promessa de campanha, não interessa, eu posso falar o que eu quiser.

 

Isso é uma episteme [conhecimento] do imediatismo do show, é simplesmente o show é simplesmente, o flash, a luz que aparece em um instante.

 

Milei está propondo a ausência total do estado. [De modo que] quando eu retiro o estado totalmente, quer dizer que eu somente vou governar por aqueles que podem se sustentar. Os outros vão entrar numa degradação, num canibalismo atroz, numa luta por sobrevivência, num conceito de vida e morte que não estava nos parâmetros analíticos da população.

 

Quando eu retiro o estado, como está acontecendo, se retira no direito da comunicação, no direito de ter uma informação, no direito de ter uma diversidade da informação, de saúde, de alimentação, de educação, de pesquisa. Quando eu retiro tudo isso, o estado, o que eu estou gerando é uma anomia total, assim, os mais fortes vão engolir, vão ingerir os pobres, as mulheres, os indígenas, povos originários, os que estão na periferia. Eles simplesmente vão ser carne  para o canibalismo social que está se implantando na Argentina [para usar] no sentido metafórico isso, onde somente alguns vão sobreviver, e os outros aqui, no sentido religioso, “Deus proverá”.

 

Essa é uma questão muito forte, no momento que você retira o estado você retira totalmente a possibilidade de viver, não de sobreviver, de viver. O que vai vir na Argentina é uma mudança muito intensa de uma relação social para um canibalismo social [a exploração de pessoas], que já está acontecendo.

 

Embora a região tenha se distanciou da política de governos militares, a Argentina corre o risco de um Estado autoritário para manter a ordem social, resultando em casos de ataque aos direitos humanos?

 

Essa outra questão também que está relacionado na forma de como uma sociedade, o discurso que foi naturalizando daqueles como que Mieli era um outsider, a região não se distanciou das políticas de governos militares. Muito pelo contrário, teve um momento que ficaram entre parênteses, mas eles são muito presentes.

 

No Brasil muito presente, mas sempre no Uruguai, na Argentina, no Chile, no Paraguai, mas vamos tomar a Argentina aqui. O Estado autoritário não vai ser militar, não está sendo militar explicitamente, mas está tendo uma lógica de extermínio, como base essa lógica de extermínio, como matriz lógicas militares. Militares no sentido de guerra, mas do outro como inimigo, do diferente como inimigo. Então, a região não se distanciou das políticas de governo militar, não podemos colocar entre aspas, não tem ditadura, mas tem ditadura, não no sentido tradicional dos militares no poder explicitamente, mas está tendo lógicas ditatoriais, lógicas de autoritarismo, [como é o caso de] Bukele, Salvador.

 

Então, não são militares de roupa militar, uniforme, mas são de lógica militar. A perseguição, agora o que aconteceu. No Brasil com ABIN (Agência Brasileira de Inteligência] aconteceu também aqui no Uruguai, com espionagem tanto de fora por parte dos Estados Unidos espionando o presidente, como também agora no governo atual, [como] no governo anterior, desde os Estados Unidos estavam espionando o presidente Tabaré Vázquez [presidente do Uruguai em dois mandatos: de 2005 a 2010, depois entre 2015 e 2019], presidente de esquerda no Uruguai. Agora estavam espionando desde o governo atual com o governo da direita, muito simpático a Milei e o Bolsonaro, estava vigiando a políticos de esquerda no Uruguai. Essas são práticas de lógica militares, táticas militares, de estratégia militar.

 

Então não é que se distanciou das políticas militares, continuam presentes e continuam presentes nas mãos de pessoas que não fizeram a escola militar ou que não fazem parte do exército, mas sim que compartilham e compartilham nossa ideia. Compartilham muitas coisas nesses países que passaram por ditaduras militares. Então, esse estado autoritário está presente na repressão, está presente na forma como reprime, como mata, como atua, porém também está presente no momento que deixa a população totalmente dependendo de uma autoridade que vai dizer o que pode e não pode fazer, neste caso não sendo militar explicitamente.

 

Se o governo não conseguir implantar o seu ultraliberalismo, o governo corre riscos de ser mais um presidente que não completa o mandato na Argentina? E quais as consequências políticas para o país?

 

Não sei se não vai completar o mandato na Argentina, o mesmo se falava do Brasil, mas as consequências já estão sendo expostas, o aumento da pobreza, o pessoal da classe média que baixou à linha da pobreza, docente que não está recebendo o salário. Tiraram todo o apoio a espaços de alimentação popular, o tema da educação, da saúde, aumentou muito [valor] as prestações de saúde, aumentaram muito o subsídio à boleto de ônibus, de metrô aumentou muito. As consequências do ódio, a violência, legitimar a violência contra alguém que pensa distinto, contra as mulheres, contra os homossexuais, contra a prostituição, contra as pessoas que tem determinada características de “anormalidade” segundo a normalidade dele.

 

Não é que não está conseguindo implantar o seu ultraliberalismo, estas coisas que estão acontecendo ele falou que isso ia acontecer com a casta, que era uma ilusão, porque ele falava que a casta é o problema, mas ele está fazendo tudo isso contra o próprio povo, [então] a casta era o povo, a classe média, a classe média-baixa, mas a classe alta não está sendo tocada, muito pelo contrário.

 

As consequências política já estão sendo vivenciadas, eu falava anteriormente, eu não sei se não vai completar o mandato na Argentina, não sei porque não depende só da Argentina, depende dessas peças como num xadrez, essas peças que vão se movimentando desde o geopolítico. Pode acontecer algumas coisas, mas eu não sei, não falaria agora se vai completar ou não, não estou pensando dessa perspectiva, porque completar ou não completar, Argentina já teve isso, então eles já conhecem essa história. Não é o tema se ele completa ou não completa, a pergunta é: qual é a Argentina que está sendo construída neste momento? Qual é a Argentina que está ficando para as gerações futuras, mas também que está ficando para as gerações atuais? Nesse sentido, qual é a Argentina que está se propondo para o mundo? Qual é a Argentina que está se propondo para a própria Argentina? Qual é a Argentina que está se propondo para os argentinos? Qual é o lugar dos argentinos e das argentinas nesta Argentina que está se configurando, esta ressignificação da política, neste redesenho dos paradigmas? Qual é a Argentina diante de um paradigma necrolítico, de um paradigma da degradação, de um paradigma da violência total, da pulsão de morte, qual é essa Argentina? São perguntas profundas, perguntas que propõem uma complexidade analítica diferente a [pergunta] se esse presidente fica ou não fica.


Porque se ele fica ou não fica não é o problema, o problema é que a Argentina está começando a vivenciar um canibalismo social, que não vai ser solucionado a um curto prazo, porque a lógica, a episteme de um canibalismo social - aqui diferente de Oswald de Andrade, a antropofagia, não estou falando dessa forma, estou falando do canibalismo mesmo dos mais poderosos diante dos mais fracos. [Falando] dessa episteme canibalista degradada, desmembrar, esquartejar a sociedade não vai ter uma solução rápida, então essa são as perguntas que eu me faço. Não sei o Milei fica ou não, se ele vai embora agora ele já destroçou coisas que vão demorar muito anos, no caso do Brasil, muitos anos em recuperar o tecido social, acho que aí são perguntas mais intensas para análise.