Tá rindo de que?

Nesses tempos de debate sobre liberdade de expressão e responsabilidade social, um ótimo artigo do escritor  e crítico de cinema Pablo Villaça (à propósito de mais uma piada ácida de Danilo Gentili) levanta, novamente, a discussão sobre os limites do humor, a graça no politicamente incorreto, o desprezo à ética e o apelo ao que ele chama de "piada-bullying". 

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A FALÁCIA DO POLITICAMENTE INCORRETO – POR PABLO VILLAÇA


Nota: este texto foi originalmente publicado no dia 03 de setembro no Diário de Bordo, blog de Pablo Villaça. Pablo Villaça é escritor e crítico de cinema e diretor do site Cinema Em Cena.
Quando se trata de humor, considero-me um sujeito relativamente experiente. Como já escrevi anteriormente, tenho um bom conhecimento sobre o stand-up, sua história e seus principais expoentes e já li bastante sobre o tema. Além disso, quem acompanha meus textos ou já teve aula comigo sabe que sou até mesmo capaz de provocar um riso ou outro quando a ocasião se apresenta – e nem sempre através de um humor limpinho ou “politicamente correto”. Não ganho a vida fazendo comédia, claro, e tampouco julgo que a profissão de humorista seja fácil. É preciso muita experiência, estudo (sim) e talento para refinar o timing que fará a diferença entre uma piada eficiente e outra inesquecível. Muitas vezes, o menor dos detalhes marca esta diferença.
Vejam, por exemplo, este “bit” (termo em inglês para uma história ou uma passagem específicas de um repertório cômico) da performance de Louis C.K. no Beacon Theater:
O texto de C.K. é construído com cuidado, aos poucos, apresentando-nos a premissa (“Há crianças das quais não gosto”) e desenvolvendo-a gradualmente até passar de um caso relativamente plausível a uma fantasia de vingança absurda. Percebam que a base da piada já é algo que poderia ser considerado “politicamente incorreto” – um adulto aterrorizando um garotinho que machucou sua filha -, mas Louis C.K. é inteligente o bastante para evitar um erro básico: em vez de transformar o menino no alvo da piada e do ridículo, ele deixa claro para o público que o ridículo é ele, Louis, por agir como um idiota. E este é o segredo para que a piada funcione tão bem. No entanto, depois de levá-la a extremos ainda maiores, o comediante comprova sua inteligência através de um gesto que pode parecer improvisado e natural, mas que, acreditem, foi precisamente calculado: depois de dizer o que faria para destruir a vida dos pais do garoto que detesta, Louis pega a garrafa d’água e a ergue para levá-la à boca (aos 8:01 no vídeo)  - mas um milissegundo antes de beber, diz, quase como se aquilo houvesse acabado de lhe ocorrer: “Você tem que proteger seus filhos”.
E é esta a verdadeira punchline do longo caso e que finalmente leva o público a aplaudi-lo empolgadamente. E não se deixem iludir pela naturalidade do gesto: sou capaz de apostar que em praticamente todos os shows, Louis C.K. repete o gesto de levar a garrafa à boca exatamente naquele momento.
Como falei antes: fazer comédia não é para amadores.
O que nos traz a Danilo Gentili, que, mais uma vez, confunde os conceitos de “piada” e “ofensa”. No vídeo abaixo, Gentili (imitando cada vez mais descaradamente os trejeitos de Jô Soares) diz: “O apagão afetou boa parte do Nordeste. (pausa) Digo ‘boa parte’ porque nem todas as cidades lá têm energia elétrica. (pausa) Sabe como eles perceberam lá no Nordeste que tinha acabado a energia? Quando parou o trio elétrico. (fazendo dancinha) Lá, lá, lá, lá, lá… Ei… cadê a música? Sem água e agora sem luz, os médicos cubanos no Nordeste estão se sentindo em casa. (ri de si mesmo)”. Neste instante, seu lacaio Roger completa: “Mas tem papel higiênico ainda.”
Ok. Em primeiro lugar, o óbvio: independentemente do fato de ser ou não ofensiva, a questão inicial é avaliar se a piada tem graça. Claro que aqui há subjetividade na reação do ouvinte – e mesmo que a plateia de Gentili pareça rir moderadamente (apesar do timing pavoroso do sujeito, que faz pausas erradas, frisa sílabas aparentemente ao acaso e deixa claro estar lendo um texto), há aqueles que riem apenas ao ouvirem palavras como “papel higiênico” ou ao verem alguém fazendo dancinha engraçadinha. Para estes, “pavê ou pacomê” é humor legítimo e moderno e, assim, deixo-os de lado. São casos perdidos.
Porém, há uma maneira fácil de avaliar a qualidade da piada: sua construção. Há alguns princípios em comum no humor eficiente – e um dos mais empregados é a subversão de uma expectativa: levar o ouvinte a esperar algo e ir na direção oposta. Não é, claro, o que Gentili faz, já que seu texto simplesmente reforça estereótipos: o Nordeste é miserável, seu povo só gosta de farra e Cuba é um país sem qualquer infra-estrutura básica.
O fato de todas estas afirmações serem absurdamente falsas não vem ao caso.
Assim, de onde Gentili acredita estar extraindo graça? A resposta é reveladora e aponta para o erro que não só ele, mas seu colega Rafinha Bastos, cometem com tanta frequência: através da ridicularização de indivíduos fragilizados. É um humor do tipo “vejam como estas criaturas inferiores são inferiores. Não são inferiores? HA! Tomara que se fodam!”. É, em suma, algo que chamo de piada-bullying.
Releiam as “piadas” do sujeito e percebam que todas são construídas a partir desta lógica: o Nordeste não tem luz, não tem água, seu povo só nota o problema quando a festa é interrompida e estas são as condições ideais para um cubano viver, já que está acostumado à falta de tudo. Não há construção de uma expectativa e muito menos subversão da mesma. Não há punchline ou crescente. Há apenas preconceito e o convite para que nos tornemos cúmplices deste. Chamar isto de “humor politicamente incorreto” é tentar proteger a falta de talento de Gentili ao sugerir que ali há humor – e não há, como já vimos.
Não é surpresa, aliás, que outro “baluarte” da inteligência e do humor contemporâneos, Felipe Neto, tenha vindo em defesa de Gentili ao afirmar, no Twitter, que “Se vc é do tipo q dá chilique com as piadas do Danilo Gentili sobre o Nordeste, saiba q vc é um ATRASO pro entretenimento brasileiro” – e, logo depois, chama as críticas de “coitadismo”.
(Aqui conterei o impulso de apontar a ironia de ler Felipe Neto chamando quem quer que seja de “atraso para o entretenimento brasileiro”.)
O que Neto, Gentili e Bastos não compreendem é o básico da teoria da narrativa – e que Louis C.K. entende como poucos: de modo geral, o público tende a se identificar com o elemento vulnerável de uma história, não com o dominante. Isto é fruto do próprio processo de formação de nossa individualidade e do conceito do “Eu” até chegar ao processo de identificação secundária na psicanálise e na narrativa (recomendo a leitura de Christian Metz para entender mais sobre o tema). Em poucas palavras: é comum que nos identifiquemos com a situação de alguém em estado de vulnerabilidade. Assim, podemos até rir da vítima em uma piada, pegadinha ou caso – desde que estas narrativas sejam construídas com certa distância, como se estivéssemos apenas observando o desenrolar dos fatos. Porém, no instante em que o narrador se posiciona como parte da história e se coloca em posição de dominância, o espectador/ouvinte tende a simpatizar com a vítima – e, neste caso, a tentativa de piada fracassa inevitavelmente.
É justamente este o erro que estes representantes do humor contemporâneo não percebem cometer, já que sempre se colocam como representantes machos e brancos de um Sul-Sudeste desenvolvido e rico que ri de mulheres, negros, nordestinos e pobres. Como já dito, isto não é piada, mas bullying – e travesti-lo de “humor politicamente incorreto” não só é uma falácia como mais um sintoma do egocentrismo de indivíduos que julgam ter o direito inalienável de humilhar seus “inferiores”.
E defender isto não é lutar pelo humor; é denotar falha de caráter.