Jornal o Popula - Goiânia
Há poucos meses a senhora fez uma palestra de grande repercussão sobre a classe média alta paulistana e seu caráter extremamente autoritário no comportamento cotidiano. Quais os motivos para essa classe, residente no Estado mais rico do País, se comportar dessa forma?
Uma das críticas ao modelo de democracia representativa, presente na maioria dos países do Ocidente, é que a população só é chamada a participar do debate público na época das eleições. Na sua opinião, o que poderia ser feito no sentido de implementar uma democracia mais participativa?
O filósofo Giorgio Agambem aponta que um dos fatores da crise da democracia no Ocidente é o enfraquecimento do Poder Legislativo. A senhora percebe esse fenômeno no Brasil? O Legislativo tem perdido espaço aqui, por exemplo, para o Judiciário?
A senhora publicou diversos livros introdutórios à filosofia, que tiveram grande sucesso de público. A senhora percebe um interesse maior hoje pela filosofia no Brasil? Entre os jovens, especialmente?
Qual a opinião da senhora acerca dos trabalhos da Comissão da Verdade? Eles representam um avanço na elucidação dos crimes cometidos durante a ditadura no Brasil ou ainda são uma iniciativa muito tímida?
No seu ponto de vista, as novas tecnologias da internet, com o advento das redes sociais, contribuem de alguma forma para uma maior democratização no acesso à informação e para o fortalecimento da liberdade de expressão?
Lisandro Nogueira é professor da UFG e coordenador do projeto Café de Ideias
13/032013 (quarta-feira)
Ela diz que nunca esteve em silêncio, já que durante todo esse
período fez conferências e participou de debates, além de ter concedido
algumas entrevistas a órgãos da imprensa alternativa. Mas o fato é que,
desde 2004, a filósofa Marilena Chauí, uma das intelectuais mais
influentes e conhecidas do País, tem se recusado sistematicamente a dar
declarações à grande imprensa, sobretudo aos veículos de comunicação do
eixo Rio-São Paulo. Com longa militância no PT, partido no qual se
filiou nos anos 80, a professora de Filosofia Política da USP e
ex-secretária de Cultura de São Paulo na gestão de Luíza Erundina optou
por “encerrar sua manifestação pública à imprensa”, conforme ela
explicou numa carta endereçada a seus alunos da universidade em 2005,
dizendo-se contrariada com o tratamento dispensado pela mídia brasileira
aos intelectuais ligados ao PT e com o noticiário relacionado ao
governo petista. Apesar dessas reservas com a imprensa, Marilena Chauí –
que ministra hoje em Goiânia, às 19h30, a conferência Democracia e
Sociedade Autoritária, dentro do projeto Café de Ideias, no Centro
Cultural Oscar Niemeyer – concordou em conceder, por e-mail, uma
entrevista ao POPULAR, na qual adiantou alguns pontos que vai abordar em
sua palestra, fez duras críticas à classe média brasileira, a qual
classifica de “autoritária”, falou sobre a crise do Legislativo e sobre o
crescente interesse do público pela filosofia no País. A filósofa, no
entanto, preferiu não responder às perguntas enviadas pelo POPULAR sobre
os dez anos do PT à frente do poder no País e sobre o julgamento do
mensalão – sobre este último tema, ela alegou que, se fosse discorrer
sobre ele, sua resposta levaria “umas 15 páginas”. O Café de Ideias tem o
apoio do POPULAR e da rádio Executiva FM. Confira a seguir a
entrevista:
O tema da sua palestra será Democracia e Sociedade Autoritária.
Quais seriam as características autoritárias que ainda permanecem na
sociedade brasileira e que, por isso, impedem a consolidação da
democracia no País?
Trata-se de uma sociedade
hierárquica, oligárquica, regida por relações sociais em que sempre uma
das pessoas é considerada superior e a outra, inferior, prevalecendo a
desigualdade como forma da relação social. Prevalecem preconceitos de
classe, sexuais, religiosos, de etnia e de gênero. Está polarizada entre
a carência absoluta da maioria e o privilégio absoluto da minoria.
Carência e privilégio impedem a consolidação da esfera dos direitos
sociais, econômicos, políticos e culturais, que definem uma sociedade
democrática.
Há poucos meses a senhora fez uma palestra de grande repercussão sobre a classe média alta paulistana e seu caráter extremamente autoritário no comportamento cotidiano. Quais os motivos para essa classe, residente no Estado mais rico do País, se comportar dessa forma?
O modo de produção capitalista
divide a sociedade em duas grandes classe sociais antagônicas: a
burguesia, detentora privada dos meios sociais de produção, e os
trabalhadores, detentores da força produtiva que acumula e reproduz o
capital. A classe média está excluída do núcleo econômico capitalista;
também está excluída do poder do Estado (que pertence à burguesia) e
está excluída das formas sociais de organização das lutas por direitos
(que é a ação dos trabalhadores). Não tendo lugar algum, ela tem um
sonho: tornar-se parte da burguesia (o que ela imagina que acontecerá se
tiver dinheiro, sem perceber que não é isso que define a burguesia). E
tem um pesadelo: tornar-se proletária. Para manter o sonho e impedir o
pesadelo, ela defende as ideias de ordem e segurança e teme as
transformações sociais, políticas
e culturais. É conservadora, reacionária e autoritária. Os programas
sociais do Estado brasileiro nos últimos 13 anos fizeram crescer a
classe trabalhadora, retirando-a da miséria absoluta e assegurando sua
entrada na sociedade de consumo. Ora, é por meio do consumo de signos de
riqueza e prestígio que a classe
média se afirma socialmente e, por isso, hoje se sente ameaçada com a
presença de classes populares não miseráveis e portadoras de direitos.
Por isso seu comportamento enfurecido.
Uma das críticas ao modelo de democracia representativa, presente na maioria dos países do Ocidente, é que a população só é chamada a participar do debate público na época das eleições. Na sua opinião, o que poderia ser feito no sentido de implementar uma democracia mais participativa?
Somente a sociedade
auto-organizada pode caminhar na direção de uma democracia
participativa. Os movimentos sociais e populares têm feito isso no
Brasil desde o final dos anos 1970.
O filósofo Giorgio Agambem aponta que um dos fatores da crise da democracia no Ocidente é o enfraquecimento do Poder Legislativo. A senhora percebe esse fenômeno no Brasil? O Legislativo tem perdido espaço aqui, por exemplo, para o Judiciário?
O imaginário político
brasileiro, desde muito tempo, tende a identificar o poder do Estado com
o Poder Executivo, a temer o Poder Judiciário (que é secreto e
incompreensível para a população) e a considerar o Legislativo ineficaz e
corrupto. Por isso mesmo a qualidade de vereadores, deputados e
senadores deixa a desejar, pois a maioria da população não acredita que
se trata efetivamente de um poder político, mas de um sistema de favores
e clientelas. Esse imaginário faz com que não percebamos o risco
crescente da juridificação da política, isto é, que as questões
políticas, tanto do Poder Executivo como do Poder Legislativo, sejam
transferidas para decisões do Poder Judiciário. Isso é um risco imenso
para a democracia não só porque criminaliza os conflitos (o coração da
democracia), como também transforma as questões políticas em questões
técnicas a serem resolvidas por técnicos supostamente competentes, isto
é, os que ocupam o Poder Judiciário, que tendem, como temos visto
atualmente, a praticar a ingerência sobre os outros dois poderes,
ferindo de morte o princípio republicano da autonomia e da independência
de cada um dos três poderes da República.
A senhora publicou diversos livros introdutórios à filosofia, que tiveram grande sucesso de público. A senhora percebe um interesse maior hoje pela filosofia no Brasil? Entre os jovens, especialmente?
Sim. E não apenas entre os
jovens. Frequentemente, encontro adultos e idosos que manifestam esse
interesse e estão se tornando um público leitor de filosofia. Penso que
vivemos um período de profundas mutações no pensamento, nas técnicas,
nas relações sociais e nas ciências (particularmente as ciências da vida) e as pessoas se sentem ou desorientadas
ou desejosas de compreender o que se passa. Como a filosofia tem a
vocação para interrogar a nossa relação com o mundo, com os outros, com o
saber, a técnica, as crenças religiosas, o espaço, o tempo, a natureza e
a história, compreende-se que vivemos um momento em que se vai a ela em
busca de reflexões, análises e críticas sobre o nosso presente.
Qual a opinião da senhora acerca dos trabalhos da Comissão da Verdade? Eles representam um avanço na elucidação dos crimes cometidos durante a ditadura no Brasil ou ainda são uma iniciativa muito tímida?
São trabalhos essenciais para a
memória histórica brasileira, para o resgate da justiça e para a
consolidação da democracia no Brasil. Isso foi feito nos demais países
da América do Sul, que sofreram os horrores das ditaduras, assim como
foi feito na África do Sul. Não há timidez. As pessoas confundem a
função da Comissão da Verdade com a do Poder Judiciário. A comissão não
tem função legal nem punitiva. Sua função é a verdade histórica. Se essa
verdade desencadear ações no plano judiciário, isso poderá ser um
efeito da ação da comissão, mas não define a ação dela.
No seu ponto de vista, as novas tecnologias da internet, com o advento das redes sociais, contribuem de alguma forma para uma maior democratização no acesso à informação e para o fortalecimento da liberdade de expressão?
Sim e não. Sim: a internet e as
redes sociais são um fator de democratização porque quebram o monopólio
da comunicação e asseguram o direito à informação e ao contraditório,
sem o qual não pode haver democracia. Não: porque se trata de uma
tecnologia sobre a qual não temos controle – não é por acaso que somos
chamados de “usuários” e não autores –, tanto porque não dominamos
tecnicamente os novos objetos trazidos pela informática, quanto porque o
controle se encontra centralizado em dois sistemas (um nos Estados
Unidos e outro no Japão) que detêm todos os endereços em escala
planetária (podendo operar uma vigilância sobre pensamento e opinião do
planeta todo) e que podem interromper o funcionamento da internet e das
redes sociais se assim o desejarem.
Lisandro Nogueira é professor da UFG e coordenador do projeto Café de Ideias
“É por meio do consumo de
signos de riqueza e prestígio que a classe média se afirma socialmente
e, por isso, hoje se sente ameaçada com a presença de classes populares
não miseráveis e portadoras de direitos. Por isso seu comportamento
enfurecido”
“As pessoas confundem a função da Comissão da Verdade com a do Poder Judiciário. A comissão não tem função legal nem punitiva. Sua função é a verdade histórica”
Palestra: Democracia e Sociedade Autoritária, com Marilena Chauí, dentro do projeto Café de Ideias
Data: Hoje, às 19h30
Local: Centro Cultural Oscar Niemeyer, G0-020, saída para Bela Vista
Entrada franca, condicionada ao número de assentos disponíveis (são
298 dentro do auditório e a organização vai oferecer mais 120 assentos
extras, na antessala, onde serão colocados dois telões)
Mais informações: 3201-4900
Perfil
13 de março de 2013 (quarta-feira)
Marilena Chauí nasceu em
Pindorama (SP), em 1941. É professora titular de Filosofia Política e
História da Filosofia Moderna da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde cursou seu
mestrado e doutorado em filosofia. Além da extensa produção acadêmica,
Marilena Chauí também publicou vários livros paradidáticos de filosofia,
voltados para o público jovem ou não especializado. Seu livro O que é Ideologia, da coleção Primeiros Passos, vendeu mais de 100 mil exemplares. A autora recebeu dois Prêmios Jabuti: um em 1994, pelo livro Convite à Filosofia, e outro em 2000, por A Nervura do Real: Espinosa e a Questão da Liberdade.
Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pelas Universidade de Paris
VIII, na França, e Nacional de Córdoba, na Argentina. Filiada ao PT, foi
secretária municipal de Cultura de São Paulo, de 1989 a 1992, na gestão
de Luíza Erundina.