Odeio dissertações. Malditas trinta linhas. O que escreverei em trinta linhas? Qual aspecto bizarro da vida humana, qual melancolia escondida esquartejarei nas miseráveis trinta linhas?
Odeio dissertações porque odeio escrever obrigada, regrada. Não posso desenhar na folha, não posso inventar palavras, não posso por um titulo sem sentido. Não posso ser sem sentido. Tenho hora para começar e tempo para terminar. Tem gente olhando enquanto escrevo. E pior: terá gente lendo o que escrevo, corrigindo os erros de português, circulando com caneta vermelha os períodos inexatos – que na verdade são partes de mim – e anotando considerações do tipo “parágrafo confuso” ou “não desenvolveu de forma clara o conceito”.
Ainda lembro-me da professora de Língua Portuguesa do magistério. Ela me traumatizou. Não aceitava nada de estilo. Redação seca, estéril, autoritária. O texto manda em você, e não você no texto. Não há você, há somente o texto. E opinião? Mentira. A maior mentira da humanidade. Não existe nada de personalidade ou autenticidade em uma dissertação. Há regras e corretores. Há citações, porque ninguém com menos de um doutorado pode ter novas ideias sobre qualquer coisa que seja. Há preocupação em escrever aquilo que querem ler. O clichê, o lugar comum, a falta de ritmo. Nenhum jogo de palavras, nenhuma ambiguidade. Nenhuma acidez ou morbidade por entre as linhas. Que morra a terceira pessoa. O sujeito indefinido. A tirania... Preciso poder conjugar livremente admitindo a particularidade, a individualidade; ainda que soe egoísta...
E as mesmices? As expressões que mais frequentam as redações. “Na atualidade”, “destarte”, “haja vista que”. Eu tento, luto contra elas. Mas parece que elas são proprietárias da dissertação. Elas querem roubar meu texto. Elas querem me dominar. Fazer de mim autor sem talento.
Odeio dissertações. Porque elas têm começo, meio e fim. Maldito fim. Elas acabam. A ideia acaba. Não podemos deixar o texto imperfeito, incompleto, para que continue a viver e crescer na cabeça do leitor. Odeio o fato de que as frases precisem ter conclusão. Odeio não poder repetir e repetir palavras. E repetir de novo. Para que o texto vire música.
Detesto ter de chegar a algum lugar. E não simplesmente ficar aqui no texto. Detesto que ele não possa ter erros. Porque quero lê-lo amanhã, daqui a um ano ou em outra vida e continuar a melhorá-lo. Quero que o texto seja um rebelde, um guerrilheiro. Uma contra-inteligência.
Quero que crie alma, saia do papel e quebre todas as regras. Que perturbe a paz. Que tire o fôlego. Que vicie. Que translitere vida em linha e depois exploda nas mentes de todos nós.
Quero que eu e você possamos escrever. Não para a prova, o concurso, o vestibular... Só para o mundo. Por mais liberdade. Por mais cabeças a pensar...
[...]
Não sei como terminar. Nunca sei. Porque o texto me prende num abraço e, de repente, já é um pedaço de mim. Começa eu e termina todos nós. Termina. Acaba. Mas não acaba.
Jamais.
Leia mais no blog Uma Noite em Saturno, por Ananda Cristie